Tuesday, October 18, 2005

O Niilismo

O Niilismo
por André Joffily Abath


Viver para o nada e negar a vida. Estes são os aspectos fundamentais para a compreensão do niilismo. Enquanto termo, o niilismo surge no romance russo, mais especificamente na obra Pais e Filhos, de Ivan Turgueniev. Porém, é em Dostoiévski que o termo niilismo ganha expressão e força, sendo considerado como um problema e uma marca do mundo moderno. Na literatura russa, o niilismo designa uma espécie particular de homem: o negador de valores, o ateu, o ressentido. Todavia, em Nietzsche, a questão alarga-se, ganhando as mais variadas formas e faces. Assim, crer em valores superiores ou negá-los deixa de ser o ponto de identificação do niilismo. Em ambos faz-se presente a vida dirigida ao nada, ou, simplesmente, negada. Torna-se, então, necessário guiar-se nesta órbita em que o niilismo relaciona-se com o força que se dirige ao nada, ou, melhor dizendo, com o desperdício da força.

Seguindo tal linha interpretativa, a base do problema residirá na vontade de poder, em seu direcionamento. Se onde há vida há vontade de poder, o mesmo não pode ser dito da vontade como afirmação da vida. No niilismo, a vontade de poder é reativa, fraca. Não promove a criação de valores e a elevação do ser; seu efeito é negativo. Assim, querer o nada e nada querer são ambos exemplos de uma vontade de poder que não age para a vida, mas sim contra ela. A força mal direcionada pode tanto dirigir-se ao metafísico, à ficção da eternidade, quanto pode estar debilitada, decadente diante de um mundo absurdo e desprovido de sentido. O rumo da força, indicará, portanto, a qualidade do niilismo, sua diferenciação.

Em Nietzsche, o niilismo percorre a maior parte de sua obra como uma crítica ao cristianismo e ao socratismo. Neste caso, a vida é regida por valores superiores, metafísicos, por um ideal ascético. O homem delineia sua existência em uma ficção, um além-mundo onde inexiste o tempo. Pela fé neste mundo, a vida é negada, suprimida e acorrentada. O homem falsifica a si mesmo, tornando-se um ser regido por valores superiores. Certo é que existe um sentido e uma verdade. Contudo, é direcionando sua força a esta verdade que o homem deprecia a vida, afinal, viver para a verdade é viver para o nada . A vida assume-se, portanto, como negadora de si própria. Preserva-se por afastar do homem o mal-estar de viver no vazio, mas nega-se por direcionar-se ao nada.

Nesta primeira forma de niilismo, o homem vislumbra livrar-se do tempo, tornar-se infinito. É por medo da morte e do tempo que o ser-humano falsifica-se. Mergulha em uma ilusão no afã de alcançar o eterno. Segue-se que o homem nega o real e entende-o como vão, como afirma Finke:

“ A ontologia metafísica considera como sendo aquilo que em verdade não passa de uma ilusão, uma ficção, e rejeita como não sendo, como sendo inautêntico aquilo que em verdade é o único ser real e efetivo. O que se toma pelo existente autêntico é o vão, mas aquilo que se tomava por vão é o único real”.

O segundo sentido que Nietzsche dá ao niilismo é menos claro. O ideal ascético esgota-se e o niilismo transmuta-se. Aqui, a vontade de poder assume seu poder de ação e destruição. Renega-se os valores superiores e com eles a ilusão da eternidade. Aqui, o homem mata seu Deus. Porém, como afirma Heidegger, o trono está vago e o homem buscará ocupá-lo. Este niilismo como destruição, é, para Nietzsche, um novo disfarce das forças reativas, destruindo, desta vez, sua antiga forma de dominação e forjando uma nova. É o niilismo ativo, que, não obstante sua força de ação, termina por desembocar no nada, na negação total de valores e da vida. Ainda assim, Nietzsche privilegia esta forma de niilismo , já que nele a vontade de poder assume-se enquanto força destrutiva da moral. Com efeito, a negação da moral indica uma elevação do homem, como afirma Nietzsche em A Vontade de Poder: “ A indigência não se tornou eventualmente maior: ao contrário! “Deus, moral, resignação”, eram meios de cura em graus terrivelmente profundos da miséria: o niilismo ativo aparece em condições que se configuram relativamente muito mais favoráveis. Já a moral ser sentida como superada pressupõe um razoável grau de civilização espiritual; esta, por sua vez, um relativo bem-viver”.

Porém, a força, após este direcionamento, enfraquece e decai. Enfraquece porque ao eliminar valores, ainda não está direcionada à sua procriação. No homem, o resultado deste processo é a decadência, o nojo pela vida. Do assassino de Deus surge o último dos homens. É o homem fraco, entendiado, postado diante do absurdo e à espera da morte. Não crê, mas também não cria.. Torna-se suicida, ultilitarista, socialista. Livre de Deus, mas ainda saudoso de sua verdade. Para o niilista ateu, o mundo assume a forma de absurdo; já não há mais um sentido, não há mais preservação da vida. É um momento em que o novo já se anuncia, mas em que o velho ainda esboça novas formas de reter seus valores. Como observa Finke, já é possível vislumbrar o trágico, mas os homens carecem, ainda, de coragem para afirmá-lo. No “Zaratustra”, esta espécie de niilismo aparece sob a forma de serpente negra. Resta ao homem a saída que restou ao jovem pastor, a quem a serpente enlaça e sufoca diante dos olhos de Zaratustra. Resta afirmar a vida aniquilando a serpente.

Podemos, portanto, afirmar que neste movimento do niilismo não houve transvalorização de valores. A passagem do mundo de Deus ao mundo dos homens é regida pela vontade de nada, pela negação. Não há , ainda, abertura ao devir, ao criar e ao eterno retorno. O último dos homens não suporta a falta de sentido de sua existência, é sufocado pela serpente negra. Este é um momento decisivo para Nietzsche. É ao afirmar a vida após a morte de Deus que abre-se a possibilidade do super-homem. Como no “Zaratustra”, onde o jovem pastor elimina a serpente, deve agir o homem. Deve abrir-se ao devir e ao tempo. Deve transformar a vida em uma experiência de criação e destruição.

Nietzsche considera que o niilismo chegou em seu último estágio. A história sairia do período obscurantista, reino do niilismo, para o período da claridade, momento em que o homem aprenderia a viver enquanto criador de valores e disciplinaria-se para uma vida no eterno retorno. Imaginando-se o niilismo como um ciclo, podemos vislumbrar a transvalorização de valores como seu último momento. Com efeito, Nietzsche considera todas as formas de niilismo como incompletas, ou seja, o fim do ciclo niilista é o fim do niilismo. O niilismo completo é o fim da vida regida pelo nada e a abertura ao trágico. A transvalorização de valores não é, portanto, a negação ou mudança de valores, mas sim a afirmação da vida enquanto criação de valores. É a vontade de poder direcionada à criação e inserida no movimento do eterno retorno. Assim, o homem entraria em confluência com o tempo. Afirmaria cada instante, mesmo que este estivesse por retornar eternamente.

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